Motivação:

Quando decidimos estabelecer que este projeto fosse acessível ao grande público da internet, sabíamos da quantidade de pessoas que poderíamos atingir. Dizemos poderíamos porque somos cautelosos e humildes, uma vez que certamente reconhecemos a gigantesca oferta: sites de literatura de inquestionável qualidade pululam no vale fértil das redes sociais, e outros, não tão preocupados com o selo qualitativo, seguem logo atrás na semeadura das letras nesta terra de ninguém - não em menor número, paradoxalmente. A literatura, por incrível que pareça, se alastra não como uma bela cultura vegetal, como uma bisonha erva daninha, porém, procurando absorver fama mineral que alimente o ego seco da raiz. Eis no que diverge o nosso trabalho e o desta horda de escritores que têm aterrorizado os dias com seus autógrafos, espadas e lanças: não necessitamos de visibilidade. Não faz a mínima diferença o número de pessoas que visualizará este blog, faz diferença apenas o fato dele existir. A intenção é ofertar um registro fiel dos dias de um homem cuja existência foi dedicada à busca da beleza, da suavidade, da paz, do amor em todas as suas incontáveis formas, ainda que tenha sido o conflito a via pela qual viajou durante a maior parte do tempo. Venkon Sinjoro Serena reconhece em si mesmo uma expressão ímpar na literatura, ainda que este fato não mereça nem celebração nem repúdio: abre um caminho entre as matas, uma faca de prata nas mãos evoca luz, eis uma estrada! Ali segue o poeta, sozinho...

v. s. s.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Eis uma maçada
Pra quem nunca
Deu a menor importância
Ao dinheiro: todos a minha
Volta dão
Imensa importância
Ao dinheiro.

Eu digo que sou poeta,
Talvez eu seja mesmo,
Eu digo que sou poeta
E meu amigo diz
Que eu deveria
Procurar alguém
Que queira publicar
Minha arte. Retruco:
Alguém que queira
Lucrar com a minha
Arte? Alguém que queira
Tornar vendável, suja,
Amarelada e triste,
Antiarte a minha arte?
Atenção: minha poesia
Não precisa
De cafetinas gordas
E exageradamente
Maquiadas!

Eis uma maçada
Pra quem nunca
Deu ao dinheiro
Valor: o dinheiro,
Nesta sociedade maligna,
Dita o caráter dos homens,
Compra e vende almas
Em leilão - corrupção endêmica!
As peles deste país inteiro coçam:
Isto é uma doença!

Vou morrer
Muito cedo e muito pobre
Sem ter conseguido fazer
A metade daquilo que eu
Queria, sem ter conseguido
Dedicar ao meu trabalho amado,
À minha arte amada, sequer
Um décimo do que eu gostaria
De ter realizado: assim, lentamente,
Definham todos os artistas do mundo
No gole de veneno
Da meritocracia...

domingo, 19 de outubro de 2014

Entre tantas verdades,
Qual verdade?
Entre tantas tristezas,
Qual tristeza?
Entre tantos amores,
Qual amor?
Entre tantos momentos,
Qual momento?
Entre tantos segundos,
Qual segundo?
Entre tantos prazeres,
Qual prazer?
Qual cidade,
Qual estação,
Qual livro, dentre tantos livros,
Estações e cidades? Entre tantos
Homens, qual deus, e entre tantos
Deuses, qual homem? Qual constelação,
Se brilham lentas todas as estrelas
Que vemos e que não vemos?
Qual cor, se o amarelo
É tão nobre quanto o azul,
Se o cinza é tão carnal quanto o vermelho
E o negro é tão puro quanto o branco?
Qual praça, qual banco
No mundo, senão todas as praças
E todos os bancos do mundo?
Alimentar a todos os pombos
Do planeta com apenas
Um punhado
De migalhas...

Dentre todas as fomes,
Qual fome?


Escolher,
Na vida,
É um crime.
Às onze horas
De um sábado de primavera
Eu percebo a paz ao meu redor
Enquanto leio textos mal escritos
Sobre as múmias ancestrais
Do Egito Antigo
Até o Sudão
Antes de Cristo.

Um cachorro, negro e amado,
Dorme aos meus pés. Eu fumo
E há silêncio em torno desta sala
Do mundo. Leio e me concentro:
Atenciosamente, com muito carinho,
Desbravo estas palavras sem estilo
Sobre múmias de glórias ressecadas
E tristemente descritas - só vale a pena ler
Quando lemos desta forma,
Quando lemos
E amamos
Sem julgar.

Às onze horas
De um sábado cinza e quente
De primavera:
Silêncio...

Não existe
Expressão pobre
Quando lemos com atenção:
Tudo o que foi escrito
Pode ensinar algo,
E não somente nos livros
Há palavras desenhadas
- Do céu ao inferno
Um único verbo, da luz
Às trevas
Um enorme
Poema.

Todos os poetas, afinal,
São paupérrimos,
Solitários,
Milagrosos...

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quem disse que a carne
Não esconde grandes segredos
Não sabe o que disse:
A parte mais linda da criação
É o encontro dos corpos,
O vibrante toque
Da matéria.

A natureza
Em tudo aquilo
Que faz é plena,
Inquestionável:
Se criou naturalmente

Os reinos mais elevados
Do ser, é menos natural
O que está mais abaixo?
Nada, nada existe

Sem que haja necessidade,
A existência
Em si é uma urgência:
Quem disse que a carne
Não esconde grandes
Segredos não sabe o que disse.

O que é mais lindo
Do que o encaixe perfeito
Dos corpos? Um marceneiro
Suave talhou com amor
A madeira agora lisa
Que às outras madeiras se encaixa
Sem requerer nenhum
Ajuste.

Quem disse
Que a carne
Não escode
Grandes segredos?
A poesia
É um crime
Que demanda
Cúmplices: nada se pode
Sozinho, é necessário um
Companheiro mais experiente
Ou ousado, o camarada
Que nos sugere

O descaminho.

Tive tantos! Quantas penas
Não foram navalhas nas mãos
Destes marginais violentos
Tomando de assalto aos populares
Com versos a queima-roupa?
Bebi, depois, com os mesmos
Os soldos de nossos crimes:
A arte embriaga muito profundamente

- Cantamos, dançamos, ainda assim
Não fora suficiente o mundo e tentamos
Um pouco mais um pouco mais além,
Onde enfim vivi a vida de jovem despreocupado
Que eu sempre quis viver.

A poesia é um crime e demanda

Cúmplices: eis que minha gangue
E eu temos escrito estes manuais inúteis
De subversão e desobediência civil
E autoconhecimento indispensavelmente
Silencioso - quem quiser pode descobrir
O sentido da vida ressecado dentro de um livro
No mercado negro dos artefatos antigos roubados
E das literaturas irriquietas às frustrações
Da alma.

A despeito disto tudo, é um crime
Empírico - e o que nasce com o homem,

Com o homem morre.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Luz,
Por favor,
Luz de fogo e paz
Verdadeira:
Para longe
De mim com
Essa história
De religião organizada,
Dogma, dízimo, Deus

Com letra maiúscula,
O meu deus é minúsculo,
Toco nele com a ponta dos dedos
Toda a vez que a ponta dos dedos
Toca algo.

Meu deus é minúsculo,
Por isso está em todos os lugares,
E não só está em todos os lugares
Como ele próprio é todos os lugares,
E mesmo a possibilidade de haver
Calor e destino e lembranças
Entre os inúmeros itens que compõe
Sincronizadamente a nossa existência.
Gratidão, deus ínfimo, gratidão:
Acima de todas as coisas
Gratidão por me seres
E seres a possibilidade
De eu ser - convivo, alegremente,
Comigo mesmo em cada ato
Deste tempo-espaço artista.

Luz, luz de fogo
E paz verdadeira:
Eis que isto significa
Apenas não pensar com temor

Sobre calor e destino e lembranças,
Eis que isto significa que, ao contrário
Do que dizem os tristíssimos e os românticos,
Amor é uma forma de viver, não um sentimento
De posse e impotência. Grato, deus minúsculo
Que entraste em meu coração por um espaço estreito
Da minha alma, grato:

Por teres me contado do amor além do amor,
Eu te saúdo com um respeito impossível
Aos sãos - sangue raro

De outros dias ancestrais
Em sacrifício incendiado.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Me sinto ridículo quando,
Tocado por uma luz sem nome,
Me doem as dores dos outros.
Empatia? Ah, que burro:
Já não sou tão triste,
Mas me aborreço com
As tristezas de outrem.
Que isso? Eu deveria ter
Paciência divina, porém
Não tenho e sofro duas vezes:
Uma pela sofrimento em si,
Outra pelo apego que me levou
A sofrer - depois, um tanto depois,
O que me assusta é o fato
Das duas dores serem uma mesma...

Sobretudo, ridículo:
Burro
Duas
Vezes.
O que faltou
Entre as nossas
Certezas e nossas
Impossibilidades genuinamente
Humanas? Que estranhos
Estes dias pelos quais andamos
Como trens nos trilhos
Sem a possibilidade
De descarrilhar.
Isabela, um pouco
De romantismo,
Um pouco do inútil,
Infundado, impossível,
Absurdo e essencial
Romantismo. Nos amamos,
Isto é certo...

O que faltou
Foi sonho.

domingo, 12 de outubro de 2014

Já não existem
Coincidências
Entre nós dois.
Que me importa
As notícias do teu
Mundo jogadas
Na calçada dos meus dias,
Então? Que me importa
Se alisaste artificialmente
Os teus cabelos que amo
Desgrenhados, se pelas
Manhãs não te vejo chegar
Arfante com tua bicicleta
E teu corpo deleitado
Da pureza do calor
Escaldante do verão?


Que me importa
Se usas o mesmo
Perfume viciante,
Se continuas fumando
Em demasia, se continuas
Fraca para as bebidas,
Se não dormes em função
De pesadelos de homens
Invadindo teu quarto
Através de portais
De luz misteriosa?
Que me importa
Se gozas com outros
Os presentes que te dei
Como flores colhidas
Nos campos de uma suavidade
Que não é acessível a mais ninguém
Neste mundo?

Que me importa, Nina, criança
Tola, amada, que me importa:
Os suspiros que teu corpo dava,
Os sorrisos que são alma e carne,
Os olhares que diziam trevas profundas,
Os acidentes no vale
Da tua alma, onde eu
Desbravei com calma
Uma natureza selvagem,
Indomável, intocada?

Que me importa?
Vem o dia das crianças
Neste mês, outubro aborrecedor,

E eu estarei como um velho abandonado
Que é muito jovem por fora para morrer.

Sussurrarei
Na cadeira de rodas
Que é meu coração
Minha dor
Pelos filhinhos
Suaves
Que não
Me deste...
Que isto
Fique só
Entre nós:
São nove e vinte
Da manhã de um
Sábado (domingo?)

Chuvoso, muito chuvoso,
E aqui já estou eu
Com frio nos meus pés
Sem meias, fumando,
Fumando, me entorpecendo
De fumaças diabólicas e café,
Escondido atrás das cortinas
Da literatura.

Sopra um vento pela janela aberta...
Não importa a umidade,
Não importa que a chuva
Respingue um pouco aqui
Dentro. Que isto fique entre nós:
Há vários dias não varro a casa,
Não sei o motivo. Algumas garrafas
De vinho se perderam, vazias, por aqui...

Meu peito tem pesado muito
(Ainda que eu não fale)
Por causa de todo este lixo
Que foi pra baixo de móveis
Estreitos e eu não alcanço...
São nove e vinte da manhã...
Tanto faz o nome do dia.

Eu não sei
Se acordei cedo
Ou não dormi, nem se sonhei
A noite toda ou andei acordado,
Mas, ah, meu coração, disto
Tenho certeza: chove muito
No mundo, eu estou atrás
Das cortinas da literatura

- Nada me protege.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

I

Não me encaixo
Nesta sociedade
De forma alguma:
Não quero votar,
Não encaro mais a necessidade
De um casamento com dois filhos
E contas sem cifra possível,
Nunca desejei um carro
Que beba a gasolina do meu sangue
E me deixe acordado quando eu quero
Dormir. A inutilidade destes aspectos
É um absurdo!


Mas, Loise, amada...

Quando lembro de um passado
Feito de vidro e bruma,
Quando eu tomo nas mãos
Memórias que tem a delícia
Do que é efêmero e tosco...
O amor assim é tosco, o verso
Livre e o amor são muito difíceis
Pra mim.

Nunca tive, nesta vida impiedosa e certeira,
Novamente uma doçura
Como a que bebi
Em ti quando foste
Flor, açucena...


II

Eis como é ridícula
Esta história de romance:
Éramos tão jovens.
Tudo é belo e leve
Quando somos jovens...

Quem falou em perder
Tempo

Não entende absolutamente nada
Das propriedades benevolentes
Do tempo.


III

Muito mais
Ridícula
É a arte
Confessional.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

I

A vida
É boa:

Não sabe
A doçura do mel
Quem nunca
O levou à boca

(Não pela falta
Do mel, mas pela
Teimosia de cerrar,
Sempre, burramente,
Os lábios).


II

Amados,

Despir do corpo
O medo é uma libertação:
Roupa quase invisível
Que praticamente todos nós
Vestimos, roupa quase invisível
Que pesa como um planeta
De chumbo sobre os ombros,
Casaco, calça, luvas e sandálias
Do desconforto - hoje eu vou
Nu à chuva
Que há...

Mais tarde, quando passarem
Todas as horas que passam sem motivo,
Eu, ainda nu, perdido entre grama e sol,
Languidamente feliz, deixarei, sem espasmos,
Que ali mesmo o meu corpo seque ao vento
Muito naturalmente.


III

Quem não tem fome
Não lembra da comida.
Apenas o que nos falta
Nos faz doer:

É ser feliz de fato
Não pensar em ser feliz...