Motivação:

Quando decidimos estabelecer que este projeto fosse acessível ao grande público da internet, sabíamos da quantidade de pessoas que poderíamos atingir. Dizemos poderíamos porque somos cautelosos e humildes, uma vez que certamente reconhecemos a gigantesca oferta: sites de literatura de inquestionável qualidade pululam no vale fértil das redes sociais, e outros, não tão preocupados com o selo qualitativo, seguem logo atrás na semeadura das letras nesta terra de ninguém - não em menor número, paradoxalmente. A literatura, por incrível que pareça, se alastra não como uma bela cultura vegetal, como uma bisonha erva daninha, porém, procurando absorver fama mineral que alimente o ego seco da raiz. Eis no que diverge o nosso trabalho e o desta horda de escritores que têm aterrorizado os dias com seus autógrafos, espadas e lanças: não necessitamos de visibilidade. Não faz a mínima diferença o número de pessoas que visualizará este blog, faz diferença apenas o fato dele existir. A intenção é ofertar um registro fiel dos dias de um homem cuja existência foi dedicada à busca da beleza, da suavidade, da paz, do amor em todas as suas incontáveis formas, ainda que tenha sido o conflito a via pela qual viajou durante a maior parte do tempo. Venkon Sinjoro Serena reconhece em si mesmo uma expressão ímpar na literatura, ainda que este fato não mereça nem celebração nem repúdio: abre um caminho entre as matas, uma faca de prata nas mãos evoca luz, eis uma estrada! Ali segue o poeta, sozinho...

v. s. s.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

I

Vivessem
Na terra
Os anjos
Como vivem
Os homens -

Anjos
Seriam?



II

Nenhuma
Vírgula
Sequer
Fora do lugar,
O desnorteamento
É uma ilusão: tudo,
Absolutamente tudo
Está
Onde deveria
Estar.

É este o maior absurdo
Do qual já se teve notícia:
Nenhuma vírgula sequer
Fora do lugar...

domingo, 28 de dezembro de 2014

Sendo um homem
Frequentemente sentado
No ofício do pensamento,
Pergunto-me o seguinte:
Quantos dias adiante,
Quantas frutas no pomar?

Meu caderno tem folhas
Em branco, um número
Imensurável, porém definitivamente
Finito. Sendo um homem,
Frequentemente, sentado
No escritório de pensar,
Pergunto-me: eu?
Realmente eu?
Por que não outro eu?
Quantos dias adiante,
Quantas folhas no caderno,
Quantas frutas no pomar?

Já tomei goles largos, largos
De vida, embebedei-me,
Ainda assim não
Saciei esta sede profunda
Que amarga-me.
Números inúteis, questões
Inúteis. Não podendo conter
Em mim todo o conhecimento
Do universo, qual a utilidade
De uma parcela ínfima?
Onisciência
Ou morte -
Depois banalidade
Da onisciência
Ou carisma enigmático
Da morte...

Quantos dias
Adiante?

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Eis
A verdade: sou
O lado escuro
Da lua, a intuição
Sutilíssima e negra,
A quinta-feira
Esquecida no passado
E também
A semana
Que vem...

O que não englobo?
Tudo me pertence
E eu pertenço ao todo.
Não gozo a minha vida,
Gozo a própria ilusão,
Aquilo que chamamos
Realidade, mas não sabemos
A essências das frases
Vagas, as lâminas
Cegas, as tardes
Mudas que não passam...
Amo estas tristezas
Tanto que para mim
São felicidades!

Me deixo levar pelo vento
E pelo farfalho de árvores
Que parecem monstros
No escuro.
Não quero
Me preocupar - há
Um motivo, é óbvio,
Há um motivo por detrás
Disto que experiencio
Quase sem querer...
Há um motivo, é
Óbvio!

Se este mundo e estes dias
Fossem para ser levados a sério,
Aí então é que seria impossível
Qualquer coisa como sanidade,
Bom senso ou razão... Abaixo
As ordens todas:

Porque quero viver,
Mordo,
Porque quero amar,
Mato.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Caminho entre matas
Que não têm caminho:
Desbravo. Tenho nas mãos
Uma faca de prata, mas
Não corto o verde -
A lâmina argêntea
Na minha mão direita,
Alva, evoca luz apenas!
Eis: meu punhal é sereno,
Meu punhal é humilde,
Meu punhal sabe cortar,
Mas prefere não.

Sem ferir
Enquanto passo,
Deslizo: sou a cobra,
O índio, a rã, a noite,
O rio. Caminho entre
As matas que não têm
Caminho: desbravo -
Me sinto tão feliz
E à vontade neste
Mundo, tão calmo,
Que por minha mão

Não brota a seiva
Doce dos ramos:
Eu quando vou
Sou um vento sutil...

Eis o primórdio das raízes:
Nas matas,
Emaranho.
I

Tenho cometido
Esforços hercúleos
Para abusar de todas
As drogas do mundo
E, por doença autoinduzida,
Parar de pensar, talvez parar
De ser. Eu sou insaciável!

Quando a sede é eterna
A consciência
É um insulto.


II

No meu pátio há
Uma parreira muito alta
Que dá frutos divinos:
Nunca alcancei-os
Com as mãos!
Nunca alcancei-os
Com as mãos,
Porém fiquei
De boca aberta
Abaixo, esperando:
Abocanhei no ar
Um ou outro,
Mas nunca alcancei-os
Com as mãos...

Esta parreira
É a arvore
Da vida,
Do conhecimento
Do bem e do mal -
Esta parreira é colossal
E seus frutos são inalcançáveis
Às mãos de quem
Não sabe dos sussurros
Das colheitas
E dos segredos
Dos sonhos...


III

No meu pátio:
Tuas raízes abafam
Todas as vozes insignificantes
Do mundo.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Os astrólogos
Sabem!
Sabem?
Algo perdeu-se
No caminho:
Uma cigana leu
O meu futuro
E o meu céu
E me disse que eu
Seria um bom pai
E um bom marido,
Mas que, por ter nascido
Sob o augúrio de Leão,
Dezoito de agosto de mil
Novecentos e sessenta,
Às vinte e três horas e vinte
E três minutos, meu demasiado
Ímpeto sexual colocaria em risco
A minha família...

Os astrólogos sabem...
Sabem?
Algo perdeu-se no caminho:
Não tive filhos senão cães,
Meu desejo sexual é uma ardência
E eu já pensei em copular com animais...
Se deuses existem
- Existem! -
Me condenaram por puro gosto,
Crianças medonhas
Queimando insetos
Por diversão.

Estou ligado à verdade
Universal, ao destino dos homens,
E ser um pouco mais aberto me faria muito bem.
Os astrólogos sabem
Que as nossas principais qualidades
Tem muitas chances de se tornarem
Nossos principais problemas. Eis
O que aconteceu comigo:

Os oráculos disseram que eu teria a sensibilidade
De um poeta, porém nunca disseram que isto seria
Uma bênção...

Sofro
Meus
Dons.
Isto é tudo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Todo poeta que preze a arte
Acaba, em dado momento,
Abandonando a arte:
Vai pra África selvagem viver
De crimes ou suicida-se
Numa tarde silenciosa
De abril ou morre de desgosto
E cai numa cova apertada.

É um filho do exagero!
Isto ninguém pode compreender!
É um filho do exagero e,
Por menos que possa parecer,
O poeta é um filho do silêncio -
Escreveu em papéis duzentas e poucas
Frases, mas no fundo da mente é que jaz
O infinito verbo invisível...

Arranca a própria orelha! Bebe uma dose
Cavalar de estricnina! Dispara,
A todo instante, tiros
Contra o próprio
Peito...

Todo poeta - existem muitos! - que preze
A arte, em dado momento, abandona
A arte, imitando assim um amante
Que, apesar do apego e do sofrimento,
Foge, porque todo amor que preste
Está fadado ao desuso...
A morte virá. O futuro é a morte.
Isto é uma sentença! Isto
É um aborto sofrível,
Porém espontâneo.
Quando a voz cala-se,
E ela há de calar-se,
Não resta nada contudo silêncio.

Quando a voz
Cala-se?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

I

Analisando em mim mesmo
O conceito ridículo e ultrapassado
De felicidade conjugal, pensando como pode
Ser possível e útil o enfadonho amor romântico,
Acabo chegando à seguinte conclusão:
Bobagem tudo isto. Tem me interessado mais
Observar com serenidade, contemplar as obras
Da vida de longe, anotar tudo em um caderninho
Tosco, etiquetar sentimentos, selecionar
Memórias como quem espeta borboletas
Ressecadas para coleção. Distância
Desta doença melodramática é o que peço!

Mas, desgraça, Loise: é um absurdo que tenhas
Olhos tão lindos e vagos, tão negros quanto
A Primeira Estrela...

Eis: tal escuridão é um feitiço!


II


Eu entreguei a minha alma! Cortei minha mão em sinal
De docilidade e sangrei dentro do caldeirão do teu corpo
Toda a minha imbecilíssima obediência... Que me sobrou,
Loise? É um absurdo que tenhas
O que tens: tudo
Te pertence.

Falhou o ritual, minhas mãos,
Contudo, ainda
Sangram: te invoquei ao mundo,
Súcubo, amada, mas rompeste
O círculo, Loise, fugiste...

Tem me interessado mais,
De longe, observar as obras
Da vida, mas - desgraça -
Uma dor quebrou toda a atenção
Que eu depositava no horizonte:

Minhas mãos
Ainda
Sangram.
I

Ter em mente esta certeza
Tola, muito tola, de que estamos
Sozinhos na terra, desde o nascimento
À morte: baboseiras!

Veja bem, solidão é, na realidade,
Solitude. No meu caso, ao menos, solidão
Não é solidão, é solitude. No teu caso
Eu já não sei o que é.

Eis: onde dormem os sentimentos
Quando não os sentimos?


II

Deixemos
De lado
A separação
Das massas:
Percebo, suavemente,
O universo como um único
Bloco - e o mais incrível
Nisto tudo é que
Eu faço parte dele!
De onde eu vim
É um mistério,
Mas sei que, do mesmo
Lugar, tudo veio junto.
O destino das coisas

É o mesmo para mim
E para as coisas:
Não importa.

Ao que sentimos
Não devemos chamar
Solidão: perdidos em pensamentos,
Não percebemos que está aqui
Tudo quanto está...

Paz é atributo
Natural a um local
Apenas: o fundo silencioso
E negro
Da mente
Humana.

Chamar de solidão
Este encontro inenarrável
Do ser sereno com o estar profundo
É, no meu reino fantasioso,
Crime hediondo,
Tristeza grave,
Pena de morte...
Para um menino
Que nasceu sem pai
Qualquer influência pode
Ser uma alegria ou uma tristeza,
É isto: não ter pai é não saber medir,
Não saber aguardar, desconhecer
Planejamentos, ignorar um mundo
Silencioso e masculino.
Ninguém que possa ensinar
A complexa arte de afiar facas,
Ninguém que saiba que olhares
Severos são também templos
De candura paternal.
Onde a firmeza
Necessária
À gentileza?


- Um menino
Sem pai
Nasce
Ao avesso...

Uma alegria,
Se o amor que faltou
É redobrado e afirmado
Por aqueles que ficaram...

Uma tristeza,
Porque, a quem foi abandonado
Uma vez sequer,
Todo amor do mundo
Sufoca.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

I

Finjo que durmo
Até dormir de fato:
Adormecer é um vinho
Muito suave, devemos
Tê-lo aos poucos, pensar,
Lentamente, nas comodidades
Benéficas de simplesmente estar vivo,
Sentir os lençóis frescos e a maciez
Incorruptível dos travesseiros
Que são nossos. Finjo que durmo
Até dormir e, neste processo,
Degusto a concepção em sonhos
De poesias inexplicáveis e belas
Que nunca encontrarão papel

- Minha mente me leva
Por caminhos constantemente
Inconstantes: se eu não mentir para mim
Mesmo, se não fingir que durmo até dormir,
Não durmo... Não há, neste mundo onírico,
Nada pior do que não dormir.


II

Quem deseja algo de fato, vida dura, vida boa,
Precisa saber fingir - é um decreto:
Somos, todos nós, atores. Fingir
Até tornar-se não é um pecado, é uma arte.
Há muitos anos finjo que sou poeta,
Finjo que penso, finjo que não faço
Parte da grande massa massacrante
- E, veja só que maçada!, parece
Que funcionou:

Sou poeta, penso,
Não faço parte
Desta grande
Massa...

Finjo que durmo
Até dormir, ai, meu deus,
Finjo que sou
Até que me torno:
Assim é que a roda
Gira.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A pergunta que está
Na minha cabeça
Há dias:

Onde a importância
Das memórias íntimas
Na era das fotografias?

Tenho, adolescente,
Tolo, arredio, a sensação
De que nasci no tempo
Errado...

sábado, 22 de novembro de 2014

Ontem à noite eu tive um sonho
Que me espantou muito, muito:
Havia uma estrada longa, longa
Demais, e ao percurso estavam
Plantados todos os meus conhecidos,
Todos, sem exceção alguma,
Portando armas brancas
Prontas para ficarem
Vermelhas
Com meu
Sangue.

Clavas, machados, espadas!
Escarraram em mim com verdadeiro
Ódio! Me humilharam e feriram
Com todas as palavras possíveis

- E alguns até inventaram novas
Palavras, por motivos de estilo:
É muito rebuscada a arte da crítica,
É muito rebuscada a arte
Do desincentivo.
Isto tudo
Não deve passar de um sonho,
É óbvio que sim, por favor!
Pois que se não fosse um sonho,
Seria triste, triste demais
Esta vida e esta estrada...

Entretanto, vejam bem
Como dos momentos mais insalubres
Faz-se o vigor: a cada golpe
Que eu recebi nas costas,
Um pouco mais à frente
Me impulsionaram.

Fizeram isto, eu sei, por amor...
Todos só queriam o meu bem,
Sempre quiseram... Eu, cavalo
Arredio, jamais me moveria
Do meu lugar teimoso
Sem apanhar.
Eis um paradoxo
Que mui me fascina:
Para quem compete
Esta guardada a derrota,
A quem nunca competiu
Resta apenas
Vitória.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Eis como é
Ancestral e animalesca
A minha necessidade
De expressão, eis a antiguidade
Deslumbrante da arte

- Há muito que tentam
Me reprimir, mas tenho
Prevalecido, dura erva,
Deserto seco:

Desde um pouco antes
Da Suméria a obra vem
Sendo composta, as mãos
Do indivíduo se sacrificam,
As mãos da raça
São glorificadas,
Desde um pouco
Antes de seis mil anos
- Ou muito mais, pois
É mentirosa a história
Como nos contam -
A obra vem sendo
Composta! Esta tal
Reincarnação deve de ser
Realidade, eu já tive muitas
Vidas antes!

Esta tal
Reincarnação
É uma loucura:
Já fui e sou
Todos os artistas
E todos os amantes
E todos os animais
Ferozes
Da selva...

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Eis uma maçada
Pra quem nunca
Deu a menor importância
Ao dinheiro: todos a minha
Volta dão
Imensa importância
Ao dinheiro.

Eu digo que sou poeta,
Talvez eu seja mesmo,
Eu digo que sou poeta
E meu amigo diz
Que eu deveria
Procurar alguém
Que queira publicar
Minha arte. Retruco:
Alguém que queira
Lucrar com a minha
Arte? Alguém que queira
Tornar vendável, suja,
Amarelada e triste,
Antiarte a minha arte?
Atenção: minha poesia
Não precisa
De cafetinas gordas
E exageradamente
Maquiadas!

Eis uma maçada
Pra quem nunca
Deu ao dinheiro
Valor: o dinheiro,
Nesta sociedade maligna,
Dita o caráter dos homens,
Compra e vende almas
Em leilão - corrupção endêmica!
As peles deste país inteiro coçam:
Isto é uma doença!

Vou morrer
Muito cedo e muito pobre
Sem ter conseguido fazer
A metade daquilo que eu
Queria, sem ter conseguido
Dedicar ao meu trabalho amado,
À minha arte amada, sequer
Um décimo do que eu gostaria
De ter realizado: assim, lentamente,
Definham todos os artistas do mundo
No gole de veneno
Da meritocracia...

domingo, 19 de outubro de 2014

Entre tantas verdades,
Qual verdade?
Entre tantas tristezas,
Qual tristeza?
Entre tantos amores,
Qual amor?
Entre tantos momentos,
Qual momento?
Entre tantos segundos,
Qual segundo?
Entre tantos prazeres,
Qual prazer?
Qual cidade,
Qual estação,
Qual livro, dentre tantos livros,
Estações e cidades? Entre tantos
Homens, qual deus, e entre tantos
Deuses, qual homem? Qual constelação,
Se brilham lentas todas as estrelas
Que vemos e que não vemos?
Qual cor, se o amarelo
É tão nobre quanto o azul,
Se o cinza é tão carnal quanto o vermelho
E o negro é tão puro quanto o branco?
Qual praça, qual banco
No mundo, senão todas as praças
E todos os bancos do mundo?
Alimentar a todos os pombos
Do planeta com apenas
Um punhado
De migalhas...

Dentre todas as fomes,
Qual fome?


Escolher,
Na vida,
É um crime.
Às onze horas
De um sábado de primavera
Eu percebo a paz ao meu redor
Enquanto leio textos mal escritos
Sobre as múmias ancestrais
Do Egito Antigo
Até o Sudão
Antes de Cristo.

Um cachorro, negro e amado,
Dorme aos meus pés. Eu fumo
E há silêncio em torno desta sala
Do mundo. Leio e me concentro:
Atenciosamente, com muito carinho,
Desbravo estas palavras sem estilo
Sobre múmias de glórias ressecadas
E tristemente descritas - só vale a pena ler
Quando lemos desta forma,
Quando lemos
E amamos
Sem julgar.

Às onze horas
De um sábado cinza e quente
De primavera:
Silêncio...

Não existe
Expressão pobre
Quando lemos com atenção:
Tudo o que foi escrito
Pode ensinar algo,
E não somente nos livros
Há palavras desenhadas
- Do céu ao inferno
Um único verbo, da luz
Às trevas
Um enorme
Poema.

Todos os poetas, afinal,
São paupérrimos,
Solitários,
Milagrosos...

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quem disse que a carne
Não esconde grandes segredos
Não sabe o que disse:
A parte mais linda da criação
É o encontro dos corpos,
O vibrante toque
Da matéria.

A natureza
Em tudo aquilo
Que faz é plena,
Inquestionável:
Se criou naturalmente

Os reinos mais elevados
Do ser, é menos natural
O que está mais abaixo?
Nada, nada existe

Sem que haja necessidade,
A existência
Em si é uma urgência:
Quem disse que a carne
Não esconde grandes
Segredos não sabe o que disse.

O que é mais lindo
Do que o encaixe perfeito
Dos corpos? Um marceneiro
Suave talhou com amor
A madeira agora lisa
Que às outras madeiras se encaixa
Sem requerer nenhum
Ajuste.

Quem disse
Que a carne
Não escode
Grandes segredos?
A poesia
É um crime
Que demanda
Cúmplices: nada se pode
Sozinho, é necessário um
Companheiro mais experiente
Ou ousado, o camarada
Que nos sugere

O descaminho.

Tive tantos! Quantas penas
Não foram navalhas nas mãos
Destes marginais violentos
Tomando de assalto aos populares
Com versos a queima-roupa?
Bebi, depois, com os mesmos
Os soldos de nossos crimes:
A arte embriaga muito profundamente

- Cantamos, dançamos, ainda assim
Não fora suficiente o mundo e tentamos
Um pouco mais um pouco mais além,
Onde enfim vivi a vida de jovem despreocupado
Que eu sempre quis viver.

A poesia é um crime e demanda

Cúmplices: eis que minha gangue
E eu temos escrito estes manuais inúteis
De subversão e desobediência civil
E autoconhecimento indispensavelmente
Silencioso - quem quiser pode descobrir
O sentido da vida ressecado dentro de um livro
No mercado negro dos artefatos antigos roubados
E das literaturas irriquietas às frustrações
Da alma.

A despeito disto tudo, é um crime
Empírico - e o que nasce com o homem,

Com o homem morre.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Luz,
Por favor,
Luz de fogo e paz
Verdadeira:
Para longe
De mim com
Essa história
De religião organizada,
Dogma, dízimo, Deus

Com letra maiúscula,
O meu deus é minúsculo,
Toco nele com a ponta dos dedos
Toda a vez que a ponta dos dedos
Toca algo.

Meu deus é minúsculo,
Por isso está em todos os lugares,
E não só está em todos os lugares
Como ele próprio é todos os lugares,
E mesmo a possibilidade de haver
Calor e destino e lembranças
Entre os inúmeros itens que compõe
Sincronizadamente a nossa existência.
Gratidão, deus ínfimo, gratidão:
Acima de todas as coisas
Gratidão por me seres
E seres a possibilidade
De eu ser - convivo, alegremente,
Comigo mesmo em cada ato
Deste tempo-espaço artista.

Luz, luz de fogo
E paz verdadeira:
Eis que isto significa
Apenas não pensar com temor

Sobre calor e destino e lembranças,
Eis que isto significa que, ao contrário
Do que dizem os tristíssimos e os românticos,
Amor é uma forma de viver, não um sentimento
De posse e impotência. Grato, deus minúsculo
Que entraste em meu coração por um espaço estreito
Da minha alma, grato:

Por teres me contado do amor além do amor,
Eu te saúdo com um respeito impossível
Aos sãos - sangue raro

De outros dias ancestrais
Em sacrifício incendiado.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Me sinto ridículo quando,
Tocado por uma luz sem nome,
Me doem as dores dos outros.
Empatia? Ah, que burro:
Já não sou tão triste,
Mas me aborreço com
As tristezas de outrem.
Que isso? Eu deveria ter
Paciência divina, porém
Não tenho e sofro duas vezes:
Uma pela sofrimento em si,
Outra pelo apego que me levou
A sofrer - depois, um tanto depois,
O que me assusta é o fato
Das duas dores serem uma mesma...

Sobretudo, ridículo:
Burro
Duas
Vezes.
O que faltou
Entre as nossas
Certezas e nossas
Impossibilidades genuinamente
Humanas? Que estranhos
Estes dias pelos quais andamos
Como trens nos trilhos
Sem a possibilidade
De descarrilhar.
Isabela, um pouco
De romantismo,
Um pouco do inútil,
Infundado, impossível,
Absurdo e essencial
Romantismo. Nos amamos,
Isto é certo...

O que faltou
Foi sonho.

domingo, 12 de outubro de 2014

Já não existem
Coincidências
Entre nós dois.
Que me importa
As notícias do teu
Mundo jogadas
Na calçada dos meus dias,
Então? Que me importa
Se alisaste artificialmente
Os teus cabelos que amo
Desgrenhados, se pelas
Manhãs não te vejo chegar
Arfante com tua bicicleta
E teu corpo deleitado
Da pureza do calor
Escaldante do verão?


Que me importa
Se usas o mesmo
Perfume viciante,
Se continuas fumando
Em demasia, se continuas
Fraca para as bebidas,
Se não dormes em função
De pesadelos de homens
Invadindo teu quarto
Através de portais
De luz misteriosa?
Que me importa
Se gozas com outros
Os presentes que te dei
Como flores colhidas
Nos campos de uma suavidade
Que não é acessível a mais ninguém
Neste mundo?

Que me importa, Nina, criança
Tola, amada, que me importa:
Os suspiros que teu corpo dava,
Os sorrisos que são alma e carne,
Os olhares que diziam trevas profundas,
Os acidentes no vale
Da tua alma, onde eu
Desbravei com calma
Uma natureza selvagem,
Indomável, intocada?

Que me importa?
Vem o dia das crianças
Neste mês, outubro aborrecedor,

E eu estarei como um velho abandonado
Que é muito jovem por fora para morrer.

Sussurrarei
Na cadeira de rodas
Que é meu coração
Minha dor
Pelos filhinhos
Suaves
Que não
Me deste...
Que isto
Fique só
Entre nós:
São nove e vinte
Da manhã de um
Sábado (domingo?)

Chuvoso, muito chuvoso,
E aqui já estou eu
Com frio nos meus pés
Sem meias, fumando,
Fumando, me entorpecendo
De fumaças diabólicas e café,
Escondido atrás das cortinas
Da literatura.

Sopra um vento pela janela aberta...
Não importa a umidade,
Não importa que a chuva
Respingue um pouco aqui
Dentro. Que isto fique entre nós:
Há vários dias não varro a casa,
Não sei o motivo. Algumas garrafas
De vinho se perderam, vazias, por aqui...

Meu peito tem pesado muito
(Ainda que eu não fale)
Por causa de todo este lixo
Que foi pra baixo de móveis
Estreitos e eu não alcanço...
São nove e vinte da manhã...
Tanto faz o nome do dia.

Eu não sei
Se acordei cedo
Ou não dormi, nem se sonhei
A noite toda ou andei acordado,
Mas, ah, meu coração, disto
Tenho certeza: chove muito
No mundo, eu estou atrás
Das cortinas da literatura

- Nada me protege.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

I

Não me encaixo
Nesta sociedade
De forma alguma:
Não quero votar,
Não encaro mais a necessidade
De um casamento com dois filhos
E contas sem cifra possível,
Nunca desejei um carro
Que beba a gasolina do meu sangue
E me deixe acordado quando eu quero
Dormir. A inutilidade destes aspectos
É um absurdo!


Mas, Loise, amada...

Quando lembro de um passado
Feito de vidro e bruma,
Quando eu tomo nas mãos
Memórias que tem a delícia
Do que é efêmero e tosco...
O amor assim é tosco, o verso
Livre e o amor são muito difíceis
Pra mim.

Nunca tive, nesta vida impiedosa e certeira,
Novamente uma doçura
Como a que bebi
Em ti quando foste
Flor, açucena...


II

Eis como é ridícula
Esta história de romance:
Éramos tão jovens.
Tudo é belo e leve
Quando somos jovens...

Quem falou em perder
Tempo

Não entende absolutamente nada
Das propriedades benevolentes
Do tempo.


III

Muito mais
Ridícula
É a arte
Confessional.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

I

A vida
É boa:

Não sabe
A doçura do mel
Quem nunca
O levou à boca

(Não pela falta
Do mel, mas pela
Teimosia de cerrar,
Sempre, burramente,
Os lábios).


II

Amados,

Despir do corpo
O medo é uma libertação:
Roupa quase invisível
Que praticamente todos nós
Vestimos, roupa quase invisível
Que pesa como um planeta
De chumbo sobre os ombros,
Casaco, calça, luvas e sandálias
Do desconforto - hoje eu vou
Nu à chuva
Que há...

Mais tarde, quando passarem
Todas as horas que passam sem motivo,
Eu, ainda nu, perdido entre grama e sol,
Languidamente feliz, deixarei, sem espasmos,
Que ali mesmo o meu corpo seque ao vento
Muito naturalmente.


III

Quem não tem fome
Não lembra da comida.
Apenas o que nos falta
Nos faz doer:

É ser feliz de fato
Não pensar em ser feliz...

domingo, 28 de setembro de 2014

Duas canções ao final de setembro.

I

Derramei
Um lágrima por ti
Nesta tarde repleta
De ventos. Me espanto:
A poesia brota de meu peito
Pétreo como brotam as flores
E os frutos quando é propícia
A estação. Olha: não por acaso,
Ingrid, amada, ontem mesmo
Começou a primavera.

Hoje
Está arejado
O pasto que ontem
A neve
Cobria.


II

A fragilidade e a abundância, a plenitude,
O aroma campestre, o coito viril, a fertilidade:

Todos os adjetivos
Que a primavera criou
Repousam no teu corpo.
Eis, amada: tenho uma saudade
Que só entende quem
Amou e nunca mais viu,
Mas continuou amando.
Não posso me separar
Da tua lembrança
Porque não és somente
Lembrança, és presente:

Estás, em pessoa,
Nos suaves mistérios

Deste vento primaveril.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

I

Pouco depois de nascido

Te abandonaram: não ao descaso
Das crianças de rua, sem pai e mãe,
Porém à sufocante necessidade
De imperar sobre os homens.
Ah, Pedro, meu amado, que saudade
Eu sinto de ti! Vejo as tuas fotos
E a dor nelas é palpável - a forca
Em torno do teu pescoço
É a mesma à qual fui condenado!
Que farias, meu amigo solene,
Magnânimo, caso não repousasse sobre
Teus ombros um império desde teus tenros
Cinco anos de idade?

Terias te casado com outra mulher, bonita e deseducada,
Terias a vida simples de choupanas e campos? Quem sabe
Se longe da corte terias sequer chegado à vida adulta?
Que digo? É bastante óbvio que poderias ter fugido
Do teu papel primordial, mas o que seria, então, do povo
Que tomaste teu, do povo que levaste ao peito,
Do povo que viveu e morreu tua causa - que era a causa
Desta terra Brasil - enquanto morrias sem viver? Quem
Teria dado ao Brasil
O nome que ele tem?

Pedro de Alcântara, amigo, amado, te vejo ainda:
N'outro universo não foste imperador, foste poeta,
Sapateiro ou cientista, tudo, tudo menos o cocheiro
Que conduz com tristeza uma carruagem por estradas
Difíceis e se ressente muito em ter que estalar o chicote
Aos cavalos assustados.

Sou mui similar a ti, amado, então empaticamente
Sofro um tanto por nós dois: imperadores que constroem

Muros altos e fosso de fortaleza, mas que juram, juram amar
A liberdade, a paz, o amor acima de tudo. Se não houver
Uma certa resiliência tola no nosso caráter, camarada, que

Condições temos de sobreviver? Um pouco de burrice
Cultivada dentro de si nunca fez mal
A ninguém - e não há quem entenda e execute
Esta verdade como teu povo
Estúpido, estupidamente
Amoroso às pequenas
Razões da vida...


II

Eu
Te escrevo,
Tu
Já morto:
Ainda assim,
Sei que me lês.
Amigo, um brinde!

Um brinde, gole cheio:
O simples fato de eu te lembrar
E tu seres uma imagem pra mim
É a dignidade inteira do universo
Acontecendo absurdamente
Entre uma ponta e outra
Do tempo
Redondo.

Um brinde!
Se não tu
E eu neste brinde,
Quem mais?

Sou, dentre homens,
O que mais te amou.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Deitado
De lado
Com ar de mercador
Oriental viciado em ópio:
Um pouco de prazer
Na minha vida, um pouco
De prazer ou a morte
- Sozinho eu não tenho forças...


Eis que vi
A beleza da montanha
Coberta de neve:
A cor destes olhos rasgados
É o silêncio, a
 língua
Que falo
É um eco da distância!
Um pouco de prazer:
Bebo para enfrentar o frio
Do cume
Do mundo...

Deitado
De lado
Um pouco
De prazer:
Um pouco
Pra sempre
Vou ficar aqui
Deitado de lado...

Nada...

O frio

Do cume
Do mundo.

Nada.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

I

Vou estudando
A realidade
Que vislumbro:
O próprio vislumbre é o motivo
Da realidade. Não preciso
Ter pressa nesta ciência
De observação...
Os resultados
Só podem ser
Analisados
Com calma e ao longo
De muito tempo. Tomo nota,
Meticulosamente, das minhas
Sensações, pois o que quero
É que meu estudo possa ser
Um auxílio didático para aqueles
Que começaram no curso depois
De mim, da mesma forma que foi
O estudo de outros uma grande fonte
De alegria onde bebi quando estive sequioso.

Tomo nota, meticulosamente, das minhas
Sensações - são amplas: sou artista, me alimenta
Uma sensibilidade que só pode ser alcançada
Com muita paciência, com muita suavidade,
Com muita atenção. Calma quando a hora
For hora de amar, calma quando a hora
For hora de sofrer, calma quando a hora
For hora qualquer: calma, porque assim
É que se abre absolutamente os olhos.

II

O ser humano tem na alma
A ânsia do prazer imediato:
Que dificuldade, homem do século
Vinte e um, tu tens em dominar
A áurea arte
De cultivar. Queres tudo agora:
A carne, a alegria, a glória inteira
De estar vivo. Nada sabes
Sobre o trabalho árduo, sobre o trabalho
Verdadeiramente árduo, sobre viver e amar
Na luz imensa do trabalho:
Lapida a pedra pouco a pouco, sem pressa
Para que fique perfeita , sem ânsia de recompensa
Pelo mármore trabalhado - ele servirá apenas
Para enfeitar a cova
Desta casca humana
E inocente
Que habitas.

Lapida a pedra
Pouco a pouco:
A tua obra é uma carta
De ti mesmo à posteridade

- Contará tuas glórias, tuas falhas magnas,
Ensinará a quem necessite, inadvertidamente,
Que havia esperança
Em cada fôlego
Que tomaste.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Sutileza
Muda,
Serena
Como uma tarde
Silenciosa de verão,
Alguma leve brisa:

Me remetes à paz
Mais sublime que já
Experienciei.

Inútil
Supor palavras:
É suave, mas isto
Não explica. Paz
No seu sentido mais profundo
É uma onda tão arrebatadora
E íntima que significados não alcançam.
Olha lá! Olha: árvores verdejando
Vida infinita, um sopro do mar tocando
Nossa face como as mãos da própria bondade,
Fé transcendental nas estações, na piedade
Natural dos átomos se reunindo e desintegrando...
Estou f
eliz, esta é a atitude mais inteligente
Possível:

Felicidade
Sem palavras.

domingo, 3 de agosto de 2014

Me esforço profundamente
Para me contentar com o que me cerca,
Para me contentar com o que há,
Para me contentar em ser:
De tanto esforço, consigo,
Me contento, me agrado,
Não reclamo...

Mas, ai de mim, como dói
Cair lá de cima dessa religião
Estúpida que é a felicidade
E dar de cara com o chão duríssimo,
Dar de cara consigo mesmo
Diante da turba pronta
Para o linchamento: o ladrão
Tentou ser mais esperto que todos,
Tentou fugir por cima dos telhados,
Porém caiu de cara, quebrou dois dentes
E apanhou muito
Dos populares... Pobre
Gatuno que tentou
Ser mais esperto
Que os populares...

Não sabias que a vida em cima dos muros
É escorregadia? Após a inevitável queda,
A dor surge e o espírito enorme da alegria é
Banalizado: resta apenas a estética da queda,
Ainda que seja muito óbvio que seu valor é
Quase nulo – eis: a beleza resguarda
Principalmente quem sofre de orgulho.

Se esforçar verdadeiramente

À felicidade é uma fuga soturna
Por cima dos telhados
Do mundo...

Me esforço. A principal preocupação
É não me preocupar. A dificuldade
É impensável: se eu cair de novo
Pode ser que eu quebre o pescoço, morra,
E eu não quero isto...
Não sabias
Que a vida
Em cima dos muros é
Escorregadia? A queda
É inevitável:
Saberás.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Eu tinha os remos
Nas mãos bem firmes, entretanto
Não era isso que me garantia
Controlar a barca:
Larguei os remos
Na água.

Deixo, aqui vai:
Deixo que o rio
Com seu curso lindo
Transporte a barca.
Aqui vai: não me importo.
Eis: não me importo, confio.

Na pior das hipóteses
Vou cair de uma cachoeira
Desde muito alto até um olho
D'água. Não me importo.
O que pode ser pior
Do que tentar remar
E ver que a barca
É incontrolável?

Lutar contra a correnteza suprema
Transforma a vida em um pesadelo,
Remarás até a exaustão de todo músculo,
Não sairás do lugar... Não, não quero isso
- Deito os remos n'água,
Deito meu corpo para trás,
Deito o meu ser: vou me perder
Olhando estrelas enquanto a barca
Desce o rio, vou cruzar as mãos
Atrás da cabeça e rir antes
De fechar os olhos: me interessa
Muito mais o sonho. Fecho os olhos.

A escuridão
Me conduz ao reflexo do espelho,
Eu mesmo sou negro por dentro
Quando calo... Lembro:

Eu tinha os remos
Nas mãos
Bem firmes, mas
Ficaram pra trás.
O curso do rio
É gentil, me deixo,
Me deixo embalar:

Durmo bem,

Nada importa.
Sou feliz de fato...

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que nada se cria:
Onde está o nascimento, então?
Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que nada se perde:
Onde está a morte, então?
Uma cabeça sábia
Que caia pela guilhotina
Disse que tudo se transforma:
Eis tu e eu e tudo.

Homem altivo, terra argilosa,
Árvores antigas no bosque, insetos
Ainda desconhecidos pela ciência,
Vento e suas partículas indomáveis,
Maciez da pele dos cães,
Glória de estar vivo:
O próprio tempo é ser
E todo o ser é tempo. O que morre?
Aquilo que não nasce?

Nada morre, nada nasce. Perceber
Isto é estar livre de nascer e morrer,
Perceber isto é viver de fato.
Usa teu faro, confia nele!
Há cheiro de benevolência e serenidade
Desde o começo do que não começou...

Eu que agora
Confio e uso a razão acima da razão
Não espero e também não nego,
Não desejo, porém não afasto,
Vivo de fato sem viver:

E cada pétala ou folha que cai
Das copas às águas são arrastadas
Pelo rio onde não se constroem represas,
Pois que sempre desemboca no grande
Mar misterioso e profundo
No qual nadamos

- Também nós,
Sem saber, somos
Arrastados...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Os últimos jasmins vivos
Já no começo do outono
Sabem que não tem muito
Tempo adiante. Sabem:
Ainda assim, gozam. Não
Reclamam o fim do calor
Que lhes sustentava os corpos,
Não agonizam o momento seguinte,
O futuro tem algo de incerto
- Eis aqui a beleza do futuro!
Gozam! Gozam tanto e tão profundo,
Tanto a morte que virá quanto a vida
Que vai, gozam tanto e tão profundo
Que se desfazem todos em cheiros
Obscenamente doces, cheiros
Que envenenam os caminhos,
E quem passa
Sequer pensa...

Gozam tanto e tão profundo
Que me contagiam com seus exemplos:
Já no começo do outono fenecem,
Mas se deitam ao chão de gramas verdes
Com leveza tamanha
Que até diante dos meus olhos
A morte perde a importância.
Obrigado por este ensinamento:
Morrer em paz a cada segundo,
Mas exalar beleza como quem suspira
Ou se espreguiça ou faz algo profundamente
Natural... Os últimos jasmins vivos
No começo do outono são saudosos,
É claro, do mormaço estupendo e forte
Do verão que os pariu: não reclamam, gozam.

Eis eu como os jasmins vivos,
A saudade que sinto não é dor:
É uma oração silenciosa e grata
- Embeleza a minha vida como um campo
Coberto de pétalas brancas.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Eu acabei
Pensando que a melhor forma
De viver fosse viver
Da forma que se quer,
Fazendo apenas o que se quer,
Adiando pra depois qualquer tudo,
Deixando passar os dias a esmo,
Não me preocupando, aliás...

Então, em um encontro casual,
Enquanto eu supunha metafisicamente
Não ter mais nada para aprender nesta
Vida, uma amiga minha me contou:
Amanhã é um sonho mistificado,
Amanhã é uma névoa cobrindo o mar,
Amanhã é um ovo que ainda não foi posto,
Por isso não pode chocar.

Vivemos apenas
Neste local absurdo e barulhento
Chamado presente perfeito, não mais
Nem menos do que perfeito, perfeito...
Quando perceberes a perfeição,
Rirás.

Amiga, amada: ainda penso, porém,
Que a melhor forma de viver é adiando
O mundo do meu peito, penso que a melhor
Forma de viver é como um animal cheio
De emoções e vazio de pensamentos, penso,
Contudo, sem sonhar – de certa forma,
Mataste o sonho em mim tão beneficamente
Que acordei assustado para um sonho ainda maior
Que os homens astutos chamam de agora.
De quantos agoras será feita, amiga, amada,
Esta nossa possibilidade absurda
De existir?

Não são poucas as cenas gigantescamente melodramáticas
Que me vem à memória. Ter a força necessária para abandonar
Gloriosamente esta vida é uma bênção guardada para poucos:
Não estou entre eles – amo meu destino, ainda...

Eu acabei pensando, concluí: a melhor forma de viver
É viver da forma que se quer.
A raça
Humana não
Sabe, supõe.
Saber é a nossa
Última qualidade,
Saber é o que fazemos
Menos. Não sabemos:
O tamanho das matas,
A origem dos ventos,
O nome da luz e as variações
Das cores das frutas entre o verde
E o maduro, incapazes de conhecer
O sacerdócio eterno das árvores,
A comunhão massiva das flores
Nos campos quando passa inverno
E vem primavera, enfim.

Supomos, apenas, que haja velocidade,
O movimento talvez seja uma ilusão,
Não sabemos nada sobre os destinos da alma,
Sobre o humor dos cães, sobre a solidão das baratas,
O nome do cheiro que fica dentro
Da geladeira quando estragam
Ovos que poderiam ter sido
Galinhas e galos, mas não
O foram e o porquê
Não sabemos.

De nós, de nós mesmos também sabemos pouco ou nada,
Também de nós não sabemos das coisas que poderiam ter
Sido, contudo não foram. Não sabemos, mas aqui há uma diferença:
Podemos saber. A pesquisa que se faz sobre si mesmo é
A mais importante pesquisa que faz
O homem sobre a realidade. Eis a ciência: saber a si
Mesmo.

Além, te despreocupa em tentar conhecer o incognoscível,
Nomear o inominável... Não há motivos pra esta disputa
Entre eu e eu. Quero mais é sentir: no sentimento repousa a ciência
Mais tenra, mais amável que pode haver.

De que adianta saber que o arco-íris se forma em função
Dos diamantes invisíveis dos céus fecundados pela luz rápida e alegre,
Se dentro de ti esta alegria não se propaga? Deixa a mesma luz te invadir,
Contempla primeiro o arco-íris dentro de ti: o saberás de fato, enfim.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Quantos pássaros passaram
Por um homem distraído
Que pensava em outras coisas
Quaisquer e não se deu conta
Quantos pássaros passaram?

Há uma memória anterior
Às memórias todas
Das pessoas todas
Que tem memória:
Quantos pássaros passaram
Não é um número perdido,
Todos os números são exatos,
Todos os números sabem bem
Onde estão – quantos pássaros
Passaram é a mesma coisa
Que vi escondido em um jardim
Quando eu era pequeno
E já não me lembro... Quantos
Pássaros passaram é as coisas
Que eu disse e não recordo,
É o que comi na manhã
De doze de janeiro de mil
Novecentos e noventa e oito
E não recordo. São as lembranças
Que não tenho, mas tenho:
Estão elas guardadas todas
Em um lugar muito bonito
Que é a onisciência da vida.

Quantos pássaros passaram
E eu não me dei conta?
Simplesmente não sei.
Esta é a poesia mais madura
Que eu já te escrevi... Tens tu
Os teus pássaros também, os que tu
Te lembras, os que tu não te recordas...

A questão agora, meu amor, meu primeiro
Amor consumado, não são os pássaros
Que recordamos ou aqueles que esquecemos:
Importa somente a revoada toda, toda ela
Um conjunto, pura, indomada, escrita à mão
Por alguém que sabe de todos os destinos
Migratórios das memórias...
Escrevo estas poesias
Todas: isto é tudo. Não
Há um mísero propósito
Por trás deste ato inconvencional.
Eu passarei
Em breve, elas passarão
Depois.

Mesmo que não passássemos,
Que adianta? Há gente demais!
Há muita voz e pouco ouvido.
Talvez sobre egoísmo
Em meus sonhos, mas qual o sonho
Que não se principia
No individual?

Não, não é possível, é loucura, absurdo:
Em algum lugar isto há de ficar
Gravado como que em uma memória,
Desenhado como que em um quadro,
Audível como que em um uma canção!
Deus! Deus incerto é a resposta!
Deus extraterrestre, deus apóstata,
Absurda, absurda toda esta comoção
De átomos e vibrações minúsculas
E luz solar tenra sobre a pele
Em uma manhã em que se sente
Preguiça e continuar na cama pelo resto
Do dia parece uma possibilidade magnífica.

Escrevo estas poesias todas: mais uma
Agora, mas isto é tudo. Deixar completamente
De lado as perguntas tolas que faço: eis que tive
Uma boa ideia finalmente: Vou viver.
Vou viver! É o que sempre digo: vida!
Executar a vida é muito mais difícil
Do que pronunciar a vida, porém...

Escrevo estas poesias... Não vou reclamar.
Talvez seja a única função
Que eu possa cumprir por aqui... De resto...
Onde me encaixo? Isto é tão natural!

Vou latir! Vou latir, sou um cão vagabundo:
Escrevo - isto é tão natural!
O azul profundo
Do céu é uma torre
Em um templo: ando
Pelas manhãs claras
De sol como quem anda
Entre quatro paredes
De alvo mármore.

A cada passo que dou
Me questiono um pouco mais
- Não há nada para o pensamento
Como uma manhã fresca de inverno
Quando é ensolarado o momento:
O que existe do lado de fora
Do tudo? Outra realidade além
Da realidade?

Os dias são templos claros
Para quem deseja meditar
Em silêncio sobre deus.
Toma a tua esteira nas mãos
E a estende depois sobre
A terra humilde de fronte
Ao mar: ali te quedarás silencioso,
Verás aves oceânicas, areia diversa,
Luz sem possibilidade de sombra,
E ouvirás, enfim, o som da canção
- Jazes sentado e sério, sereno,
Enfim te entregaste
De olhos fechados.


Ah, não há acústica
Como a acústica do templo
Ensolarado e arejado, do templo
Do lado de fora!
Ouvirás a canção
E pensarás
Sem pensar,
Questionarás
Sem questões:

Existe uma realidade
Além da realidade? Qual a cor
Dos olhos de deus?
Obedeço
A algum tipo de impulso
Selvagem quando escrevo.
Talvez seja isto, não, certamente é isto
Que um cão sente quando uiva longamente
À lua e sofre! É isto que sente o gato
Quando uma crise de amor lhe rasga o peito
E ele grita e rola bruscamente sobre
Os telhados das casas sem se preocupar
Com quem dorme – se dorme é porque
Não entende de amor.

Agora eu sei: sou um animal
Que tem em si a lembrança da selva,
Porém foi domesticado desde muito cedo.
Eu não faço arte, eu rosno! Eu ronrono!
Caço pássaros, não palavras! Só quero saber
De me deitar ao sol, somente me deitar ao sol
Compensa a vida – quero o estômago cheio
E pouco mais que calma.

Obedeço
A algum tipo de impulso
Selvagem quando escrevo:
Vim de uma selva na qual os homens
Nunca pisaram, selva dos poetas, dos embriagados!
Não posso, em hipótese alguma, me ajustar a esta
Cidade, não posso entender os manuais
Formais de literatura, isto é muito
Pra mim... Me deixem
Grasnar e cagar nos cantos,
Sou um bicho: estas roupas de humano
São o caos
E a prisão
Na minha pele...
Para que serviu,
Boabdil, todo o teu esforço?
Suspiraste e depois choraste,
Mas o que dói é que já sabias
Que irias suspirar e depois chorar.
Isto tudo é um absurdo, meu amigo...

Antes tivesses deixado
Que teu pai infiel amasse Isabelle,
Antes não tivesses tentado ser líder
De homens, antes não tivesses,
Escondido, fugido de Alhambra
Com teu irmão não menos desgraçado
Do que tu.

Boabdil, antes tivesses esquecido
Que eras príncipe! Poderias ter
Abandonado a tudo, fugido não
De Alhambra, mas de toda a vida,
Brandido a lâmina não contra a carne
Cristã, mas contra a tua própria.
Isto tudo é um absurdo, meu amigo...

Percebes? Sabias! Sabias muito tempo
Antes, como todo homem minimamente sagaz
Sabe: irias suspirar e, depois, chorar, pois
Que o suspiro e o choro são o destino
De toda a raça. Antes tivesses abandonado
A tudo, ido para as montanhas, virado
Um pastor breve de carneiros serenos...

Que digo? É um absurdo tudo isto!
Ainda assim chorarias e suspirarias:
Qual a diferença entre perder Granada
E um carneiro tresmalhado nas encostas?
O que dói menos? Serias o mesmo infante
Desafortunado, uma vez que ninguém foge
Das lágrimas que os deuses lhe reservam
Desde há muito na ampola do tempo.

Nunca te contentarias, príncipe amado,
Amigo meu, com uma choupana e um forno,
Com pão sovado por mãos simples da tua esposa
Simples, precisavas perder, precisavas suspirar,
Precisavas chorar: não um carneiro, porém um reino...
Sem pensar
Estive no vale.
Verdejava. Se eu pensasse,
No vale eu não estaria. Estar
É estar, pensar não é estar.
O pensamento impede a percepção:
Verdejava – não perceberia jamais
Caso pensasse.

Não levarei ao vale
As minhas tristezas.
Eis: todo pensamento
É uma tristeza. Há um grande
Vão entre o pensamento
E a razão: a razão
Da natureza
É empírica.

O que me importa agora
É ser natureza e sentir
O que sou
Deveras...

terça-feira, 15 de julho de 2014

O olho da madrugada
Talvez tenha um nome.
Pesquiso a redundância
Do silêncio: nada encontro.
Talvez isto seja absolutamente
Muito mais do que posso querer
Da vida.

O olho da madrugada
Certamente tem um nome.
Há mistério por trás do mistério,
Há sussurros por trás dos sussurros.
Alguém deixou aberta a porta, pronto:
Entraram estes pensamentos estranhos
Como cães fazendo farra descontroladamente
Sem que ninguém os consiga enxotar de volta
À rua.

A questão não é a questão,
Mas o motivo da questão. Não me doem
A resposta, não mastiguem a minha comida,
Por favor! Me mostrem, porém, a necessidade
E o fundamento da pergunta. Perguntar
É estar vivo!

O olho da madrugada é uma raiz,
O olho da madrugada é subjetivo e parco,
É uma sombra serena sobre os muros da noite
O olho da madrugada, a cerca que cerca destinos,
A foice que ceifa vida, a flor que germina os ares,
Floresce, amadurece, reproduz e fenece e morre,
Nunca cessa, contudo...

Me doem, agora, se possível,
A cor das perguntas sem motivo,
Das paixões das respostas que nunca terei,
Das paixões das respostas que nunca precisei,
Me doem, agora, e somente isto há de ser
Beleza suficiente para que eu me emocione
E possa pensar que é farta e cômoda
A vida.
Não quero saber
Dos minutos que passam. Não
Quero saber da literatura, das noites
Se desenrolando lindíssimas nas ruas,
Das serenatas, dos sonetos, das gramáticas,
Dos livros de romance. Não quero saber
Das virgens, não quero saber dos poetas velhos,
Das crianças traquinas, da glória da vida. Não quero
Os campos, não quero a luz do sol, as ervas nos cantos,
Os fungos perdidos, as sombras dos pátios, as casas
De madeira da infância. Não quero o cheiro da saudade,
Não me importam as lembranças metodicamente inexatas,
Não são nada senão criações quiméricas, não são nada
Senão um conto muito antigo que se conta
A toda juventude sem exceção. Não quero saber
De inocências, de medos, de delírios, de fôlegos,
De palpitares de peito: há um lugar muito bom
Para tudo isto no fundo de um baú. Há um lugar
Muito bom para tudo isto no fundo do inferno,
No canto das memórias imemoráveis, no subconsciente
Desnecessário e feio.

Afogarei no esquecimento de mim mesmo a poesia,
Todas as namoradas, todos os planos, todas as adolescências
Do mundo material e rude. Não me importo com o que não
Me dá lucro algum: torno a arte uma despreocupação,
Darei a tudo muita beleza, mas não quero pensar enquanto
Trabalho. Que se danem a forma, os conceitos, os argumentos,
As certezas discursadas. Que se danem os estereótipos, as cartas
Marcadas, as purezas tolas e a incapacidade de romper barreiras:
Eis aqui toda a minha subjetividade – nada é necessário, nada é
Insubstituível, construirei a casa da alegria
Com aquilo que me der de bom grado
A vida.

De resto, roubarei, com certeza roubarei
- E sem nenhum arrependimento - do mundo o que for
Necessário à minha alimentação parca e rara: sou um cacto,
Sou um cacto que viverá séculos, ainda que coma pouco,
Ainda que só beba água furtada das chuvas.
Sou um cacto – deixarei da minha pobreza
Desértica umas flores tão lindas, mas tão lindas,
Que será improvável que acreditem os céticos
Que nasceram elas entre tais espinhos:

Fazer muito
Com o pouco
Que se tem
É o dom
Dos sábios.
Mistério do silêncio
Das manhãs cálidas
Do meu pátio amigável:
Qual segredo carregam
Nos bicos os pássaros,
Qual conhecimento
As plantas têm no verde,
Qual a idade, quantas coisas
Viu a terra dos meus canteiros,
A terra logo embaixo
Dos meus pés?

Ah, mãe que me abrigarás novamente,
Cobertor do meu cadáver frio,
Sábia nos rituais iniciáticos da morte:
Como o mestre fez com o pão e o peixe,
Quantas bocas alimentarás
Com minha carne e meu sangue?
Ah, terra que irás me abrigar,
Podes perceber a beleza que há
Em deixar pra trás a fantasia,
Em despir a máscara quando se acaba
O baile de máscaras e sabemos, suspirantes,
Que nada é pra sempre, mas que o fim das coisas
É uma delusão desinteressante?

Mistério do silêncio
Das manhãs cálidas como carícias
De uma moça na minha face,
Como as mãos de uma moça,
Suaves, na minha face...
Confio no mistério como quem estás prestes
A receber um beijo! O silêncio é o bastante!
Se a face desnuda de deus não foi capaz
De assustar aos pássaro, criaturas tímidas,
Por que assustaria eu, que sou tão criatura
E tão tímido quanto? Encaro meu pátio
E suas incógnitas: candura da natureza,
És brusca e divina, leve, sem pressa
- E eu um tolo que ousa
Questionar motivos...

Mistério do silêncio, vou me deixar levar,
Pois cada dia que vem é único, não volta,
E estas manhãs passarão com todo seu significado
Oculto e sua matéria palpável. Ser é passar:
Eu passo, por isso fico, e me dou
À terra aos poucos.
Há duas raças
Dentro de uma raça,
Há dois momentos:
Um que ergue prédios altos,
Um que olha flores e chora.

Há dias que percebo: o homem
É diferente do homem. Há muitos
Dentro de muitos. Há múltiplos
Dentro de múltiplos: talvez
O universo, a realidade, deus,
A essência, tudo isto seja apenas
Reflexos de reflexos dentro de reflexos,
Um túnel de espelhos sem fim,
Uma ilusão de ótica impossível.

Há diversidade em tudo, tudo é possível:
Quem percebeu os caminhos da natureza
De fato, quem disse que é como é por ser?
Há razão escondida na métrica da existência,
E a razão em si é um rio com muitos afluentes...

Há duas raças dentro de uma raça, homens, como tudo,
São diferentes dos homens. Cada ser é um ser, porque ser
É uma tarefa muito íntima, é um fardo extremamente sacro,
É um dever que não cabe ao outro cumprir: ser lapidado por mãos
Menos hábeis que a do mestre lapidador é a tristeza dos diamantes
Raros.

Cada pedra é única: há várias pedras na família das pedras.
Cada rio é único: há muitos rios na família dos rios.
Cada dia é único: há muitos dias que tenho percebido
A alma que está escondida acima da pele sensível
Do mundo. Aprendo com tudo. Sou grato.

Sapiência divina, organismo organizado não se sabe por qual força,
Raciocínio natural, o que nos trouxe à vida? Me permita
Por um segundo a ousadia, a rebeldia, o narcisismo de quebrar
Este espelho que reflete a luz que há e constrói, com esmero,
Tudo o que vemos com o corpo inteiro como um olho,
Tudo o que sentimos com a pele toda, a pele da vida,
Tudo o que farejamos com o instinto animalesco que
Nos habita como habita a natureza justa e impostora,
Me permita quebrar este espelho sagrado na hora sagrada
Da morte: o que busco é a paz inexplicável dos santos anônimos.
Eu queria
A coragem
Necessária.

Eu queria
Olhar todos
Nos olhos.

Eu queria
A verdade
Suprema.

Eu queria
A alegria
Qual flor:

Colheria
As lindas
Cores no campo,
Alargaria as terras,
Suprimiria as mágoas,
Inundaria os rios
Comigo mesmo.

Eu queria
A coragem
Necessária,
Eu queria
A sabedoria
Suprema.

Saber muito:
Saber pouco.
A inteligência
Não como fardo,
Mas alívio, alívio,
Alívio supremo
Às todas ardências
Que eu sinto,
Às dores que
Me corroem
Como a ferrugem
Ao ferro, às melancólicas
Horas destes dias estranhos
Nas quais eu cai sem saber de onde...
Mário de Sá-Carneiro, amigo
Que eu não conheci: eu sou como tu,
Me sinto como tu te sentias, quero algo
Que está além de todas as possibilidades.
Mário de Sá-Carneiro, grande entre grandes,
Eu sou como tu, amigo que não conheci:
O que me falta ainda são os cinco frascos
De estricnina e um bairro tão elegante
Quanto Montmartre para poder morrer.

Ah, meu amigo, eu quero tentar, como quero!
Sei, porém, que muitos tentaram como eu não tento:
Perderam, estão todos muito distantes de tudo
Aquilo que conhecemos agora, tentaram!
As vísceras, intuitivas, Mário, palpitantes:
Todos eles sabiam que deus guarda cinco
Frascos de estricnina para cada membro
Desta nossa raça de trágicos, todos eles sabiam,
Principalmente os poetas sabiam, como tu sabias
E eu sei... Ah, Mário, a lírica é uma desnecessidade
Que não fala nada com nada... A ninguém importa
A poesia que não seja a poesia de sua própria vida
- Ou a poesia de gigantes em quem, sem outras possibilidades,
Procuramos nos espelhar.

E tudo isto é falso como a maquiagem de uma puta triste:
Uma hora serão removidas todas as cores que a luz dá,
A face da tristeza há de se converter resplandecentemente
Na face da verdade que tanto amamos sem conhecer.

Mário, amigo querido que nunca conheci:
Em breve nos conheceremos e, entre goles alegres
De qualquer bebida amarga que tu gostes e que me mate,
Me contarás que houveram também alegrias
Enquanto vivias.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Escrever
Por escrever, amar
Por amar, flores
Que brotem por brotar
Apenas: não me vejam,
Não sou nada, meus versos
São tudo.

Se preocupa a rosa
Em saber se alguém a vê?
É bela, ainda assim.
Sem motivos à beleza,
Porém, senão ser bela
E exalar o que é.

Ah, me deixem ser como flores!
Me deixem ser como flores
Que mostram pétalas lindas:
Se as olhares de perto saberás
Dos muitos rasgos nas fibras
Comidas por insetos, das securas
Dos verdes que não podem ser
Analisadas senão de perto,
Das tristezas de um outono que virá
E de um inverno longo após.
Se olhares de perto, saberás dos muitos
Defeitos: são tantos, inúmeros, que são o mesmo
Que nenhum, a soma tão grande
Que é igual a zero. Ao conjunto de defeitos
Chamamos perfeição.

Ser por ser apenas. Ser com tamanha profundidade
Que não diria ser, mas estar. A possibilidade de tudo isto:
Eis aqui a verdadeira beleza e a verdadeira perfeição.

E lembremos a figura daquele monge do oriente distante,
E lembremos que ele passou toda uma vida procurando a flor
Sem imperfeições, e não esqueçamos que quando ele morria
Lentamente em meio a um jardim de cerejeiras percebeu:
São perfeitas todas elas.

Fareje as flores, não olhes, porque são enganos
Os olhos. Fareje as flores, não olhes por um segundo sequer:
Serás inteiro tomado pelo perfume que nunca percebeste e,
Por fim, perceberás.
Da terra muito distante
Da qual eu vim, porém não lembro,
Da terra muito distante
Da qual eu vim, guardo, apesar
Dos pesares, o gosto das frutas que lá
Nasciam e que já não como há séculos.

Ilha longínqua, maré nas praias, sol a pino
- Eis que era tudo belo, e mesmo as tempestades,
Quando havia tempestades, eram graciosas e sutis.
Não temíamos a morte, não enterrávamos nossos mortos:
Lhes dávamos ao fogo, viravam cinzas e fumaça e logo
Estavam atentos às porções mais ínfimas da existência.
Os mortos suspiram! Não só na terra muito distante de onde
Eu vim, mas em todas as covas! Não os ouço aqui como
Já os ouvi, mas sei que falam como mudos...

Através da minha pele
Todas as peles estão ao sol. Um dia,
Será a minha pele que precisará da pele alheia
Para se bronzear: os vivos, os mortos, os que não
Nasceram e, portanto, não morrem: todos são
Um só. Na terra onde eu nasci há milênios,
Na terra onde eu era feliz sem lembrar nada,
Senão a sensação pura de ser feliz: lá cada criança
Sabia do segredo
Da unidade.

Terra amada, fui eu quem te abandonou
Ou tu que me exilaste? Não recordo. Terra amada,
Terra cujo nome eu ignoro enquanto rememoro
O gosto crocante das pedras salgadas de mar,
Terra: havia necessidade de perder de vista as tuas fontes,
Teus aromas, tuas jovens frescas esperando casar
Com os varões determinados que se jogavam às ondas
Para que houvesse peixe em cada mesa
À necessidade exata
Da fome?

O tempo
É mestre de segredos impossíveis, sabe
O que faz: foi necessário, por motivos que me fogem,
Que eu abrisse os olhos e me visse aqui, mas como quero, terra amada,
Retornar as tuas areias imaginadas e morrer
Com a paz que não vivi...
Como negar
Tudo isto?
Aqui estamos.
Ousamos negar.

Aceita, homem, pois que
Isto é o que és: és tudo,
E o tudo inteiro
Te é.

Não pretendo desafiar
A lógica de deus dizendo
Que deus não existe:
Prefiro sentir a mim mesmo,
Prefiro saber que cada centímetro
Disto é a glória acontecendo,
Prefiro imaginar que é este
O caminho da humanidade inteira,
Que vamos todos para o mesmo lugar
E há de ser lindo.

Me arrebate com gentileza,
Eu não vou mais me importar...
Agora,
Não depois,
Agora mesmo
Muito amor, todo
O amor plausível
E implausível! A glória,
A luz, a impossibilidade
De expressar! Amor
Sem medo algum, que transpassa
A pele como um dardo de dentro
Para fora, disparada do coração
Contra outro coração...

E, quando atingindo,
Como sangra! Com enorme
Felicidade: sangra! Com leveza
Divina: sangra! Com o peso do mundo
Inteiro sobre os ombros: sangra...
Sangra por não poder senão sangrar
- Digo que o amor é um rio, as águas
São furiosas mesmo quando calmas,
As margens estrangulam... Não resta
Nada: correr para o final de si mesmo
É muito natural.

Agora mesmo, porém! Agora mesmo é que
Eu quero me acabar, me consumir por nada,
Me destruir de amor, me reconstruir depois,
Inteiramente outro, predestinado a saber
Que este não é o sentimento dos romances apenas,
Contudo é o valor que se dá à alma universal
E é o valor que se recebe de volta.

Me jogo na chama alucinantemente quente,
Deixo que as labaredas me consumam, sou
Um carneiro para o sacrifício muito feliz de ser
Um carneiro para o sacrifício. Deixo que as labaredas
Me consumam, logo estarei disperso, logo poderei
Renascer, logo me restará nada, e tudo o que eu for
Não será.

A alma que me tornarei
Será uma dispersão de cores invisíveis acima
Das cabeças humanas.
Será na integridade, agora mesmo, amor absoluto.
I

Oculta conexão
De caracteres
Vermelhos e vastos
Às portas
Do nascer
Do sol:

O impronunciável
Se chama paz,
A cor é branda
E viva e ilustre
- Aqui, entre nós:
Nada além do burro
Exercício da felicidade
Realmente
Importa.

II

O nome
Das coisas
É vago: vagos
São os momentos
Também.

De que adianta?
Todas as nossas verdades
São ilusões proibidas...

Viver só faz sentido
Quando se vive
Em silêncio
E atenção.

III

A candura escondida
Abaixo da casa dos mortos
É o teu gozo amargo
Na boca da confusão alheia.
Orgulho! Se isto tudo
Não fala sobre orgulho
E teimosia e gesto vago,
Então não sei o que
Estas coisas são...

Impedimentos abusivos,
Canal da carne noturna,
Tortura do corpo
Da alma:

Desde há muito
Esquecemos as boas
Lembranças...
I

Das inúmeras vezes
Que morri, algumas
Foram no meio do deserto.
Todas as vezes que nasci,
Nasci no meio do deserto:
Voltar ao lar é uma questão
De opção na hora da morte.

Já morri engasgado,
Já morri queimado e afogado,
Já me condenaram injustamente
À forca em outra vida, mas também,
Dentre estas inúmeras possibilidades
De fraquezas do ser, já errei confessamente,
Não sem ter sofrido, na hora ou depois, mágoa
E arrependimento. Deus sabe o que faz: só ele e eu
Sabemos o que aprendi com meus erros.

Abram os olhos, meus irmãos, eu imploro no final deste poema:
A vida, apesar de individualmente efêmera, é infinita no coletivo.
Das inúmeras vezes que morri, renasci todas elas. Deus sabe
O que faz.

II

Em outra
Vida fui
Um sufista:
Girei, girei, girei
Em torno de mim
Mesmo e dei de cara
Com uma luz impronunciável:
Eu.

Eis o nome do bem amado: Eu.
Eis o nome de deus, acima de tudo: Eu.
Eis o nome de tudo, acima e abaixo,
Mesmo a possibilidade de tudo: Eu.

Eu sou
O caminho
A verdade e a vida:
Oferto ao mundo minha alegria!
I

O vento
Brando à face:
Saltaste, Ícaro, em direção
Ao fundo do precipício, mas
emergiste, depois, glorioso.
Ah, meu amado, qual melhor
Sensação do que esta? Que melhor
Do que saber que o sol nos aquece
E que seu calor é breve, porém
Ameniza a todas as covas do mundo,
Negramente prontas para o corpo dos homens?
Que melhor, meu amado, do que se sentir
Despido de todas as roupas às mãos
Da brisa cálida e morna?
Brisa deveria ser o rápido nome
De uma deusa
Suave...

Conheceste a escuridão. Para alçar teu voo
Fizeste uso da velocidade da queda, quase tocaste
As trevas do fosso onde o sol não entra – ascendeste,
Contudo: com estupenda velocidade desceste ao quase solo,
Com a mesma velocidade chegaste ao quase sol...
Vês, meu amado? Não vês. Todas as verdades
São meias verdades: o quase sol em nada
Se distingue do quase solo.

Vês? Não vês: eis que a luz cega tanto quanto a escuridão.


II

Se ao menos tivesses ouvido
Ao teu Dédalo, ao teu querido,
Ao teu sagrado, amado, louvado
Dédalo! Ai! Se tivesses ouvido
Este maldito que te trouxe ao mundo,
Se tivesses ouvido o teu local de origem,
A tua carne, o teu sangue, se tivesses entendido,
Ícaro, o caminho do meio:
Nem muito ao sol, nem muito ao mar,
Como te disse
O teu velho...

O que pensaste quando aprendeste a voar?
O homem que percebe as próprias asas
Se julga capaz de tudo... Querias mais luz,
Mais calor, tu que conheceste as trevas, tu
Que quase morreste de frio. Querias o espaço
Aberto que era o oposto de um labirinto,
Querias a glória de Apolo inteiro nos teus braços
- Que conseguiste? Derreteste as tuas asas,
Queimaste tuas penas, caíste efusivamente
Como uma pedra arremessada e, como uma pedra,
Rapidamente encontraste o fundo do mar,
Onde há terra.

Chora, Ícaro, teu pai teus excessos, tua gana, teu vício,
Chora: ele te alertou. Quiseste o que não se pode ter,
Devias ter ficado entre o céu e o mar, nem perto do sol,
Nem perto das ondas. Desejaste: quem quer algo deve saber
O risco de o querer...
Teu corpo caindo
À grande cova das marés
Ensinou uma lição a todos
Nós, meu amado, a todos nós...